domingo, 16 de agosto de 2009

Projeto Rondon, Em nome da esperança

Por: Sulaine Reis

Sempre escutei que os olhos são o espelho da alma. Porém, nunca tinha prestado muita atenção no olhar dos outros. Quantas vezes olhamos e não enxergamos nada? Só percebemos aquilo que não nos fere e não atrapalha o nosso caminho calmo e sereno. Ignorar é uma das maiores “virtudes” dos seres humanos. Por isso, se não enxergamos o outro, como podemos perceber seu olhar, suas necessidades?
Foi preciso enfrentar mais de
dezesseis horas de viagem até Catuji, no norte de Minas Gerais, para compreender essa sutileza da vida. Quantos olhares nós do Rondon despertamos? Olhares de admiração, desconfiança, carinho, medo. Olhares de pessoas acostumadas a não serem enxergadas e, por isso mesmo, algumas se escondiam e outras nos seguiam encantadas com tamanho movimento e disposição. Afinal, foram muitas pinguelas e cercas para atravessar.

No assentamento da Fumaça, zona rural da cidade, o pequeno Mateus venceu o receio inicial e nos conduziu pelas trilhas do local até a casa de seus primos. Cinco crianças, a mais velha com onze anos, cuidando uns dos outros enquanto os pais trabalhavam na cidade. Assim como Mateus, as crianças em idade escolar frequentam a escola da comunidade. Na verdade, a “escola” é uma sala cedida por um casal do local.
Dezessete crianças, de diferentes idades, dividem-se entre seis carteiras, um sofá velho e o chão e tentam aprender.

Apesar de terrível, a situação nem de longe foi a pior vista na cidade. Às margens da
BR116, crianças e adolescentes não esperavam nem o manto da noite para irem para o acostamento. Os caminhões, quase em fila, diminuíam a velocidade, paravam e “recolhiam” uma menina. Detalhe, o relógio ainda não marcava seis horas da noite.
Já a escuridão, dispensável para o exercício da “profissão mais antiga do mundo”, era companheira constante de uma família em Formoso, outro distrito de
Catuji. Um casebre de dois cômodos é a moradia de sete pessoas: cinco crianças e dois adultos. Para iluminar o ambiente um fogão à lenha, que parecia expelir toda a fumaça do mundo, e uma lâmpada no centro da casa. Marretas abriram pequenos orifícios para a entrada de ar e mãos varreram, lavaram e limparam o local, tentando recuperar um pouco da dignidade humana perdida.

Quando achávamos que já tínhamos visto tudo, nos aparece
Felipe. Nove anos de idade e muita responsabilidade. Seja no pasto, às cinco da manhã, ou nas ruas de Catuji vendendo picolé, o menino derrubou todas as nossas defesas. Ele chegou até nós no sábado. Vinha com a avó, pois soube que estávamos “distribuindo comida”. Na verdade, o que tínhamos era cachorro-quente e refrigerante, o lanche dado para as crianças na tarde de lazer organizada pela equipe do Rondon.
Ao visitar a casa dele, depois de andar mais de 3 km pela
BR116, o quadro se tornou mais assustador. Duas crianças doentes com bronquite, outro fogão à lenha e sua fumaça e uma mãe que, por não ter relógio, não sabia quando deveria medicar a criança que ela tinha levado ao médico. A solução encontrada? Usar a programação da TV para definir os horários dos remédios.
Na cozinha, enquanto conversávamos,
Felipe cuidava da comida dos irmãos. Na panela o menino cozinhava macarrão. Os adultos responsáveis? Uma senhora de sessenta anos, lavadeira de profissão, e uma moça de vinte e cinco anos, mãe de cinco filhos. O que fazer? O que falar? Da mãe conseguimos a promessa de levar o outro filho doente ao médico, arrumar a chaminé do fogão e ser a mãe dessa família. Já Felipe nos prometeu voltar a estudar, apesar das mais de cinquenta faltas.

Todos são iguais, é o que diz a lei. Todos têm direito à saúde, educação, habitações dignas. Relembrando as casas de taipa, as “escolas”, a
BR116, rota de prostituição, independente da hora e da idade, e enxergando em cada rosto a felicidade de serem lembrados e respeitados, nem que seja por quinze dias, é difícil acreditar no que diz o papel. Os ideais de igualdade parecem, ainda, utopia, um sonho de pessoas alienadas que não conhecem a realidade do país. Porém, eu ainda acredito que é possível mudar. Num de nossos encontros com a comunidade de Catuji, pediram para falar sobre o projeto e de nossas “férias” na cidade. Eu resumi assim: “ estávamos ali em nome da esperança em um futuro melhor e o nosso objetivo era tentar diminuir a fome de informação que domina nossa sociedade, pois só assim as mazelas sociais poderiam ser diminuídas.”

Educação de qualidade, esse é o caminho para a mudança. Andando e conversando com as pessoas percebemos que poucas conheciam seus direitos. Uma senhora até me questionou se “velhos tinham direitos?”. É claro que têm, mas se as pessoas não sabem quais são e a importância de lutar por eles, a troca de votos por telhas, que nunca chegaram, continuarão acontecendo, o problema social se agravando e vários Felipes crescerão ignorando o que é ser cidadão.

Nenhum comentário: